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Receita Federal analisa a tributação sobre “Trusts”

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Por Lavinia Junqueira e Bruno Remedio >

Em 31 de março de 2020, a Receita Federal do Brasil (RFB) produziu a Solução de Consulta COSIT 41/2020, dispondo sobre o tratamento tributário de valores recebidos de “trust” no exterior. A contribuinte esclareceu à RFB que seu marido havia constituído “trust” no exterior e, tendo falecido em 2016, ela passou a receber valores do “trust” na qualidade de beneficiária e herdeira. Perguntou então à RFB se tais valores deveriam ser tratados como rendimentos tributáveis pelo imposto de renda (IRPF) ou se estariam sujeitos ao imposto de transmissão causa mortis e doação (ITCMD).

Ao responder à consulta, a RFB ressalta que “não é possível saber sobre o conteúdo, finalidade e condições” do referido “trust” e por isso a resposta foi baseada unicamente nas informações constantes da consulta. Concluiu a RFB que, quando a pessoa física residente no Brasil recebe renda, rendimentos, de “trust” constituído no exterior, tal renda é tributável pelo imposto de renda na metodologia do carnê-leão, pela tabela progressiva mensal, à alíquota máxima de 27,5%. A RFB ressaltou que é incompetente para analisar a incidência ou não do ITCMD e nesse tanto a consulta portanto é ineficaz.

Em nosso ver, a RFB acertou ao concluir que os rendimentos recebidos de “trust” no exterior estão sujeitos à tributação de 27,5%. A consulente, por outro lado, não esclareceu à RFB nenhum outro detalhe sobre a constituição do “trust” e sua estrutura de capital e rendimentos, por isso, a autoridade fiscal não analisou em que medida os valores recebidos pelo “trust” eram ou não rendimentos.

Neste artigo, contextualizamos o que é o “trust”, seus diferentes usos, e ponderamos as limitações de aplicabilidade dessa Solução de Consulta em estruturas de “trust”.

I – O que são os “Trusts”

Os “trusts” são contratos fiduciários, pelo qual o instituidor, “settlor”, confere certo patrimônio para que um agente fiduciário, ou administrador, “trustee”, o guarde e eventualmente administre para, futuramente, destiná-lo a um ou mais beneficiários efetivos, “beneficiaries”. Submetendo-se à legislação competente aplicável ao “trust”, em geral o patrimônio do “trust” tem autonomia em relação ao patrimônio do agente fiduciário, não se confundindo com ele, e também autonomia em relação ao patrimônio do instituidor. Essa independência patrimonial é chamada de “afetação” patrimonial.

Tal patrimônio autônomo do “trust” consiste nos “trust funds” e não se limita a dinheiro. Em geral inclusive são constituídas uma ou mais empresas, e o “trust” participa dessas empresas que, por sua vez, detêm os direitos e obrigações. Os “trust funds” podem possuir, mas não obrigatoriamente possuem, contas patrimoniais distintas para o capital, os recursos originalmente depositados no “trust” (“capital account”) e a renda, os rendimentos auferidos desde sua constituição (“income account”). O “trust” pode permitir, ou não, que o “trustee” capitalize de tempos em tempos a renda do “trust”.

Uma característica importante do “trust” é que o agente fiduciário não deve fazer uso dos bens do “trust” em proveito próprio, exceto disposição em contrária no instrumento de “trust”. Há diversas modalidades contratuais, desde “trusts” revogáveis, irrevogáveis, além de variações nos poderes do “trustee” e grau de envolvimento do instituidor.

É inclusive muito comum existirem “trusts” com um conteúdo e objetivo bastante semelhante ao que seria aplicável a um testamento no Brasil, servindo praticamente como um meio alternativo ao inventário para transmissão sucessória de bens.

No direito interno brasileiro, não há a figura do “trust” como há no exterior. A contratação de contratos semelhantes ao “trust” sob lei brasileira é conhecida, porém tratada como uma espécie de depósito ou mandato sem representação[1]. Por outro lado, reconhece-se no Brasil a liberdade contratual pelo que as pessoas são livres para celebrar contratos, inclusive de “trust”, no exterior.[2] O Supremo Tribunal Federal reconheceu que um “trust” pode ser uma conta quando o instituidor é o único beneficiário, pode revogar a conta a qualquer momento e retém controle sobre os ativos do “trust” e respectiva “conta”[3]. Uma conta é um investimento, composto pelo custo de aquisição, ganho de capital e renda.

A própria RFB, pelo Ato Declaratório Interpretativo 5/2016, ao esclarecer o preenchimento da Declaração de Regularização Cambial e Tributária (DERCAT), na resposta à pergunta 25, dispôs que deveriam ser declarados como “bens e direitos” o valor dos ativos do “trust” em 31/12/2014.  Da mesma maneira o Banco Central do Brasil, nas instruções à Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE) esclarece que os direitos a “trusts” devem ser declarados “na ficha ‘Outros ativos’ salientando no campo ‘Objeto do Investimento’ se é revogável ou não”.

II – Nosso Entendimento

A nosso ver, dada a grande flexibilidade e variedade no uso de “trusts”, o entendimento da RFB na Solução de Consulta 41/2020 não pode ser reproduzido automaticamente para outros casos. A própria RFB observou a limitação da sua resposta, dado o fato de que a consulente não esclareceu à RFB o conteúdo, a finalidade e as condições do “trust”. Como vimos, os “trusts”, em geral, são reconhecidos no Brasil como “bens e direitos” capazes de gerar “renda” mas não, necessariamente, integralmente compostos por “rendas”.

Por exemplo, o “trust” pode ser interpretado no Brasil em verdade como um depósito de bens, em geral com transferência de administração, para posterior restituição ao instituidor. Se o instrumento de “trust” é utilizado unicamente com o conteúdo e efeito parecido ao que seria no Brasil o conteúdo de um testamento, para uma transmissão sucessória simples, trata-se de transmissão sucessória gratuita. Em outros casos, cumpre verificar se o “trust” mantém o registro segregado da conta capital, registrando os montantes originais recebidos do instituidor que, quando destinados aos beneficiários, qualificam-se herança ou doação, e da conta de rendimentos, registrando o acréscimo dos valores oriundos da gestão dos bens, que se qualificam como rendimentos tributáveis pelo IRPF. Se não há essa segregação do custo original dos bens recebidos do instituidor, então de certo a integralidade dos montantes pode ser considerada produto, ou renda, da gestão, sujeita a 27,5% de IRPF. Essa foi, em nossa visão, a premissa adotada pela RFB na Solução de Consulta 41/2020, na ausência de maiores esclarecimentos por parte de quem fez a consulta.

A despeito do nosso entendimento e da crescente existência de interpretações jurisprudenciais sobre “trust”, destacamos que ainda é um tema relativamente desconhecido no Brasil e sujeito a riscos de questionamento por parte de autoridades fiscais federais e estaduais. A transferência de patrimônio aos “trusts” pode vir a ser interpretada muitas vezes de forma equivocada como doação, sujeita a ITCMD e também a imposto de renda (vide Solução de Consulta 309/19), e a transferência de patrimônio dos “trusts” para os beneficiários pode vir a ser interpretada como rendimento, sujeita a 27,5%, e como doação, sujeita a novo ITCMD.

Assim, trusts devem ser utilizados com moderação e a redação, estruturação e declaração dos investimentos em “trusts” devem ser cautelosamente concebidas para evitar ou mitigar esse tipo de questionamento.

[1] Vide decisão do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.438.142 SP, em que se reconheceu a validade do contrato de trust, tratando-o para efeito civil como um depósito. Não se reconheceu autonomia patrimonial entre os recursos depositados e o patrimônio do “trustee”, porque o trust foi celebrado entre duas entidades brasileiras, sob lei brasileira, e não haveria na lei brasileira previsão para a “afetação” e segregação desse patrimônio em relação ao “trustee”.

Vide ainda CASTRO, Felipe Faltay Katz de. Os Negócios Fiduciários na Jurisprudência e na Doutrina Brasileiras. Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Direito, São Paulo, 2000, em que relata o caso de Luiz Eduardo Matarazzo que cedeu ações a Angelo Denti em contrato fiduciário, falecidos ambos, em 1969 o Tribunal de Alçada de São Paulo decidiu que o espólio de Angelo deveria destituir as ações ao espólio de Matarazzo (RT 292/505). Em 1968 o Tribunal de Justiça de São Paulo teria decidido no mesmo sentido que o espólio de Euphly Jalles deveria restituir à mãe e irmãs bens que lhe foram conferidos para administração em relação fiduciária.

[2] Um exemplo é o caso de “trusts” constituídos no exterior pelos quais os agentes fiduciários depositários, “trustees” passam a ser titulares de aeronaves e os “trusts” têm como beneficiários de tais aeronaves outras pessoas jurídicas ou físicas, que podem ser residentes no Brasil. Em certos casos as autoridades aduaneiras entenderam que admissões temporárias desse tipo de aeronave no Brasil eram irregulares, pois o “trustee” não seria o real proprietário das aeronaves cujo ingresso no país estava sendo autorizado e utilizado por terceiros, os reais beneficiários, aplicando pena de perdimento. Já o judiciário algumas vezes entendeu que, no “trust” a propriedade fiduciária da aeronave é transferida ao “trustee” estrangeiro, para atender às exigências de lei estrangeira para registro da aeronave, e desdobra-se assim a propriedade entre o “trustee” e o beneficiário, que pode ser uma empresa brasileira operadora da aeronave. Esses fatos, por si só, não constituiriam descumprimento da norma de admissão temporária, não cabendo a pena de perdimento. Se houvesse a ocultação do beneficiário ou a interposição fraudulenta de terceiros, a legislação prevê aplicação de outros tipos de multa. Nessa linha Acórdão 0050837-93.2011.4.01.3400/DF, Rel. Desembargador Federal REYNALDO FONSECA, SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.1192 de 08/08/2014. Sentença do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, no Processo nº : 25299-08.2014.4.01.3400, de 25/11/2015, atualmente anulada, mas que traz uma compreensão de como se opera o instrumento de trust.

[3] Ministro Teori Zavaski, Inquérito 4146 / DF em 22/06/2016.

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