Por Cauê Rodrigues Amaral >
No dia 14 de abril de 2020, foi publicada a Lei nº 13.988/2020, decorrente da conversão em lei da Medida Provisória n° 899/2019, conhecida como “MP do Contribuinte Legal”, já regulamentada pela Portaria PGFN n° 9.917/2020.
Dentre outras medidas, a Lei nº 13.988/2020 tratou de: (i) instituir a transação entre a Fazenda Pública Federal (o que inclui, aqui, inclusive as autarquias e fundações estatais públicas federais) e seus devedores e (ii) extinguir o voto de qualidade no âmbito do CARF, estabelecendo que, em caso de empate no julgamento colegiado, deve-se favorecer o pleito do Contribuinte.
Em que pese o voto de qualidade estar atualmente extinto, ressaltamos que já existem movimentações políticas para revogar o dispositivo que extinguiu o voto de qualidade do CARF. Em 17/04/2020, o Senador Eduardo Girão (PODEMOS/CE) protocolou a emenda 54 à Medida Provisória nº 952/2020 para revogar o dispositivo incluído pela Lei nº 13.988/2020, que trata da extinção do voto de qualidade.
Voto de qualidade no processo administrativo federal
De acordo com o artigo 25 do Decreto nº 70.235/72 – recepcionado pela CF/88 com força de lei – o julgamento em segunda instância no âmbito do processo administrativo federal será realizado pelo CARF, órgão colegiado e paritário, responsável pelo julgamento de recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância (no âmbito de suas três Seções), bem como recursos de natureza especial (no âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF).
Dado esse atributo de órgão paritário, metade dos membros das turmas julgadoras são representantes da Fazenda Nacional e a outra metade de seus componentes são representantes dos contribuintes. Em que pese seu caráter paritário, o parágrafo 9º daquele artigo estabelece que os cargos de Presidente das Turmas Julgadoras serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional e que, em caso de empate, têm o voto de qualidade ou tinham, até o advento da Lei nº 13.988/2020.
Muitos discutem se o voto de qualidade é coerente, sob a ótica de que muito embora os cargos de Presidente das Turmas Julgadoras são ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, a decisão administrativa quando desfavorável ao contribuinte pode ser contestada perante o Poder Judiciário, o que não ocorre para a Fazenda Nacional[1].
Outra discussão gira em torno da constitucionalidade da Lei nº 13.988/2020. Existe discussão se a matéria poderia ser objeto de Medida Provisória em razão de ser estranha ao seu conteúdo e eventualmente não ser urgente, o chamado “contrabando legislativo” (posição adotada pelo STF na ADI nº 5.127). Acerca deste ponto, destacamos que outras matérias que poderiam ser consideradas não urgentes, como por exemplo a Medida Provisória nº 881/2019 “MP da Liberdade Econômica”, também vieram por meio de Medida Provisória. Fato é que qualquer medida que possa surtir um estímulo econômico é pertinente e pode ser considerada urgente, além de oferecer mais segurança jurídica aos contribuintes. Assim, pelo fato de ser uma medida microeconômica de estímulo, entendemos ser uma norma constitucional.
Com isso, a nosso ver, a extinção do voto de qualidade produz não só efeitos futuros, mas imediatos sobre os Processos Administrativos, inclusive aqueles que aguardam julgamento no CARF (e.g., em fase de embargos de declaração). Além disso, há um potencial efeito retroativo sobre casos decididos por voto de qualidade a favor do fisco, em vista do artigo 106 do Código Tributário Nacional[2] (in dubio pró contribuinte).
Isso porque, em nossa visão, assim como a legislação criminal, a tributária também é um exercício do poder estatal. O princípio in dubio pró réu/contribuinte é um limitador importante do exercício desse poder que deve ser mantido a qualquer custa em defesa do estado de direito, cujo único meio de defendê-lo, quando se tem uma dúvida objetiva, é interpretando/aplicando a norma, que nesse caso, é pró-contribuinte. A lei não deveria pender para nenhum lado. Se há uma dúvida objetiva (por isso foi objeto de empate de votos), a interpretação/aplicação da lei, nesse caso, deve se dar de forma mais favorável ao contribuinte, já que o conceito basilar do Código Tributário Nacional é limitar a atuação do fisco[3].
Inclusive, a própria Procuradoria Geral da República, que recomendou o veto desse dispositivo por meio do Ofício nº 57/2020/ASSEP/PGR, comentou sobre a aplicação retroativa do art. 19-E da Lei nº 10.522/2002, nos seguintes termos:
“(…) a sua sanção pode dar azo à aplicação retroativa do art. 19-E da Lei n.º 10.522/2002, com fundamento no art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988, bem como no art. 2º, Parágrafo Único, do Código Penal, desconstituindo inúmeros créditos tributários definitivamente constituídos a partir de julgamentos do CARF em que, verificado o empate, houve o voto de qualidade por parte dos Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais, conselheiros representantes da Fazenda Nacional, e provocando, por consequência, o trancamento de várias e importantes ações penais em curso. (…) Por fim, do ponto de vista tributário, a aplicação retroativa do art. 19-E da Lei nº 10.522/2002 poderá embasar inúmeros pedidos de restituição dos tributos e/ou valores acessórios recolhidos, em prejuízo ao erário. (…)”
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1 Segundo informado pelo JOTA, dados do CARF apontam que, em 2019, apenas 5,3% das decisões foram tomadas pelo voto de qualidade, dentre as quais 75% favoreceram o Fisco.
2 “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;
II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:
- a) quando deixe de defini-lo como infração;
- b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
- c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”
3 A título de exemplo, destacamos dentre outras, a recente decisão proferida pela 20ª Vara do Distrito Federal, cujo entendimento adotado se deu a favor do princípio in dubio pró contribuinte. (Processo nº 1019859-09.2017.4.01.3400)
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